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Herança maldita: breve relação sobre as origens da homofobia na Índia

Atualizado: 7 de set. de 2018


Ajay Verma/Reuters

Hoje (06/09, sexta) pela manhã fui agraciado pela feliz notícia de que a Suprema Corte Indiana revogou a lei que criminaliza a homossexualidade na Índia. A felicidade vem acompanhada por um sentimento otimista de que as coisas realmente vêm melhorando no mundo, mas não basta apenas realizar uma leitura superficial do fato. Existem detalhes que são interessantes para incorporar aos debates sobre o tema no mundo inteiro.


A Índia é um país com uma matriz cultural e religiosa muito diversificada. Muitas religiões tiveram sua origem no subcontinente, dentre elas o Hinduísmo, cuja maior parte da população indiana é adepta. O Hinduísmo é uma religião muito plural, tendo diversas divisões, práticas e escrituras, definindo distintos grupos com interpretações criacionistas diferentes. Mas o que o Hinduísmo tem a ver com o debate da homossexualidade? Para começar, a sexualidade e as expressões de gênero são tratadas de uma forma diferenciada. As lendas reverenciam bastante atos sexuais entre seres do mesmo sexo, abordando história sobre divindades que apresentavam a expressão dos dois gêneros e alternavam, até mesmo, entre os espectros feminino e masculino. Enfatizando ainda mais a naturalidade das abordagens sexuais na cultura indiana, temos o Kama Sutra, um antigo texto da literatura sânscrita que detalha o comportamento sexual humano e suas formas de expressar o amor. O interessante é que no Kama Sutra se faz várias referências a atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo.


Ainda na questão da cultura hindu, com grande expressão atualmente, temos as hijras, transexuais pertencentes a uma comunidade de mesmo nome que cultua a deusa Bahuchara Mata. As hijras, mesmo que, tradicionalmente, sejam de uma comunidade marcada por imposições quando analisada sob nosso olhar ocidental, eram aceitas culturalmente, sendo tratadas hoje como um “terceiro gênero” na Índia após decisão tomada pela Suprema Corte Indiana em 2014.

Entretanto, resta uma dúvida: se nesse ponto de vista existia uma expressiva diversidade de gênero e sexualidade na cultura indiana geral, o que construiu os tabus que hoje assolam a Índia? Podemos apontar a expressividade do islamismo no território indiano como um dos fatores, mas, a grande inimiga é a dominação inglesa com seu puritanismo europeu. A presença europeia nos períodos marcados pelo colonialismo, mercantilismo e imperialismo degeneraram muitas culturas ao redor do globo. Genocídios, manobras políticas traiçoeiras e aculturação descarada são as palavras que resumem a marca de desgraças que os europeus proporcionaram às demais culturas. No caso indiano, o destaque é da Inglaterra, maior império do mundo em seu auge e que exerceu grande dominação.


A influência inglesa na Índia acontecia desde o início do século XVII, mas foi em 1858 que a coroa britânica passou a controlar o subcontinente diretamente, período em que o território passou a se chamar Índia Britânica ou Raj Britânico. Foi durante a segunda metade da conhecida Era Vitoriana, momento de plena prosperidade econômica para os ingleses graças à grande expansão do império. Período marcado também pela propagação de um fundamentalismo anglicano que defendia rígidos costumes com base em um moralismo social e sexual. Além da dominação política e econômica, o imperialismo europeu foi marcado também pela dominação cultural, onde acreditava-se que era um dever propagar os bons costumes europeus para as demais civilizações tachadas como atrasadas. Partindo deste viés, um longo e complexo processo de regulação da sociedade foi imposto aos indianos pelo domínio britânico com o auxílio de diversas ferramentas de opressão.


A Seção 377 do capítulo XVI do Código Penal Indiano foi uma das ferramentas de regulação do povo indiano. O parágrafo atribui punição de 10 anos de reclusão e multa para qualquer pessoa que mantenha uma relação carnal que atente contra a “ordem da natureza”, lembrando que tal ordem era definida pelo pensamento puritano vitoriano. Tal seção foi a arma legislativa para implementar um pensamento retrógrado na Índia, onde cada vez mais essa mentalidade de ordem positivista se impregnou e influenciou o modo de viver do indiano. É trágico pensar que esse código de origem imperialista vigorou e moldou uma sociedade inteira até os dias de hoje, praticamente 157 anos depois, mas não mais.


Fico feliz que a Suprema Corte Indiana tenha chegado ao consenso de revogar a Seção 377. Mesmo numa sociedade que hoje é interpretada como tão conservadora, um raio de esperança surge no meio desse mar de ignorância em grande parte imposta. Acontecimentos assim revigoram a fé na humanidade, nos dando uma leve esperança de que o mundo pode sim caminhar para uma realidade mais justa. Para os indianos, assim como para o mundo, é só o começo. O código penal estabelecido na Índia durante a dominação britânica foi modelo para muitos outros países, e a revogação da Seção 377 pode ser mais um passo para que estes revejam como que o imperialismo ainda possui tanto poder nos dias de hoje.


Por enquanto podemos comemorar, mas, tanto para os indianos quanto para o mundo, ainda precisamos lutar muito para conquistar nossos direitos e garantir que a justiça seja verdadeira nos próximos passos da existência humana. Por fim, deixo a pergunta: Já reviu as origens dos seus preconceitos?

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